O Acórdão de 17/01/2013 do Supremo Tribunal de Justiça veio a
decidir sobre recurso da decisão do Tribunal da Relação do Porto, sobre uma
questão polemica e difícil de resolução face a complexidade que resulta da
situação concreta.
Trata-se de apurar a responsabilidade contratual do médico,
no acompanhamento médico de uma gravida.
Uma das questões que aqui se coloca é, se no sistema jurídico
português existe – o direito à não existência.
Pelo
interesse jurídico que esta matéria suscita deixo a decisão do TR Porto de
01/03/2012 e a do STJ de 17/01/2013 (que é uma novidade na jurisprudência).
Transcrevo,
partes da decisão desta última decisão, que entendo de grande relevância.
«De
todo este complexo factual pode-se concluir sem qualquer margem para dúvidas
que por parte dos Réus houve uma conduta ilícita e culposa, pois poderiam e
deveriam ter agido de outro modo face à constatação inequívoca de malformações
do feto, traduzindo-se a violação dever cuidado na preterição da leges artis na matéria de execução do
diagnóstico porque este deveria ter conduzido à aferição das aludidas
malformações, atentos os meios empregues em termos de equipamento e tendo em
atenção a preparação privilegiada do Réu, o médico M, cujos conhecimentos
científicos, como demonstrado ficou, estão acima da média, o que nos conduz à
sua responsabilização contratual tal como decidido se encontra pelas
instâncias, inexistindo qualquer circunstância susceptível de afastar a
presunção de culpa que sobre os mesmos impende, de harmonia com o preceituado o
no artigo 799º, nº1 do CCivil».
(…)
«A circunstância de a
Lei permitir à grávidas a interrupção da gravidez nesta situação, além do mais,
não tem de per si a
virtualidade de «interromper» o apontado nexo, fazendo antes parte do mesmo,
porque sendo aquela solução uma opção das interessadas, desde que devidamente
informadas com o rigor que se impõe neste tipo de ocorrências, impenderia sobre
os Réus os mais elementares deveres de cuidado no que tange à elaboração do
diagnóstico, o que de forma culposa omitiram, impedindo assim a Autora de
utilizar o meio legal que lhe era oferecido, atento o tempo de gestação em
curso (inferior às vinte quatro semanas), de não levar a termo a sua gravidez
caso o entendesse, o que esta teria feito atentas as circunstâncias.
Daqui decorre a consequente responsabilização dos
Réus, recaindo sobre os mesmos o dever de indemnizar, estando, assim, as
conclusões, neste particular, condenadas ao insucesso.
Aqui chegados, vejamos então em que termos se irá
traduzir o dever de ressarcimento dos danos advenientes do comportamento
culposo daqueles, o que nos leva à análise do seu pedido recursivo subsidiário»
(…)Esta expressão, «wrongful life», foi utilizada pela primeira vez nos EUA, por um
Tribunal do Estado do Illinois, no caso Zepeda
versus Zepeda, tendo-se generalizado por contraposição à expressão «wrongful death», enquanto nestas
acções o pedido tinha por base a vida que deveria ter continuado e à qual foi
posto termo, naqueloutras, o pedido encontra a sua fundamentação numa vida que
continua quando deveria ter terminado, ou melhor dizendo que nunca deveria ter
tido início, sendo que neste tipo de acções, levadas a cabo pela própria
criança, através dos seus representantes legais, invocando como danos os
emergentes do seu próprio nascimento, a qual não existiria caso o médico
tivesse agido com a diligência que sobre si impendia, cfr Mark Cohen, Park v.
Chessin: the continuing judicial development of the theory of «wrongful life», in American Journal of Law &
Medicine, 1978, vol 4, nº2, 211/232, Fernando Dias Simões, Vida Indevida, As
acções por wrongful life e a dignidade da vida humana, ibidem, 187/203 e Carneiro da Frada, A própria vida como dano?
Dimensões civis e constitucionais de uma questão limite, in Revista da Ordem dos Advogados,
2008, I, 215/253.
A grande discussão desta temática surgiu-nos com o
famoso arrêt Perruche, da Cour de Cassation francesa de 17 de
Novembro de 2000: Nicolas
Perruche nasceu a 14 de Janeiro de 1983, o qual vem a apresentar um ano mais
tarde malformações do síndrome de Gregg (também conhecido pelo síndrome da
rubéola congénita, embriopatia rubeólica e agente etiológico), por força de
rubéola contraída por sua mãe durante a gravidez, tendo aquele Tribunal
decidido m sessão plenária que a criança tinha direito a uma indemnização
porque as faltas cometidas pelo médico e pelo laboratório tinham impedido a
possibilidade da mãe interromper a gravidez e assim evitar o seu próprio
nascimento, de onde pela primeira vez na história judiciária um Tribunal
Superior concedeu uma indemnização a uma criança pelo facto de ela ter nascido
e a polémica instalou-se, não só na sociedade francesa, à qual o assunto dizia,
na altura, directamente respeito, bem como a nível europeu, tendo o legislador
francês vindo a aprovar a Lei 2002-303, de 4 de Março de 2002, sobre os
direitos dos doentes e qualidade dos serviços de saúde, se estabelece:
«I. - Nul ne
peut se prévaloir d'un préjudice du seul fait de sa naissance. La personne née
avec un handicap dû à une faute médicale peut obtenir la réparation de son
préjudice lorsque l'acte fautif a provoqué directement le handicap ou l'a
aggravé, ou n'a pas permis de prendre les mesures susceptibles de l'atténuer.
Lorsque la
responsabilité d'un professionnel ou d'un établissement de santé est engagée
vis-à-vis des parents d'un enfant né avec un handicap non décelé pendant la
grossesse à la suite d'une faute caractérisée, les parents peuvent demander une
indemnité au titre de leur seul préjudice. Ce préjudice ne saurait inclure les
charges particulières découlant, tout au long de la vie de l'enfant, de ce
handicap. La compensation de ce dernier relève de la solidarité nationale.
Les dispositions
du présent I sont applicables aux instances en cours, à l'exception de celles
où il a été irrévocablement statué sur le principe de l'indemnisation.
II. - Toute
personne handicapée a droit, quelle que soit la cause de sa déficience, à la
solidarité de l'ensemble de la collectivité nationale.
III. - Le
Conseil national consultatif des personnes handicapées est chargé, dans des
conditions fixées par décret, d'évaluer la situation matérielle, financière et
morale des personnes handicapées en France et des personnes handicapées de
nationalité française établies hors de France prises en charge au titre de la
solidarité nationale, et de présenter toutes les propositions jugées
nécessaires au Parlement et au Gouvernement, visant à assurer, par une programmation
pluriannuelle continue, la prise en charge de ces personnes.», in L'arrêt
PERRUCHE et ses suites (naissance d'un enfant handicapé) Rédigé par Me
DURRIEU-DIEBOLT, Avocat à la Cour, disponível na internet, cfr ainda www.courdecassation.fr
e www.legifrance.gouv.fr.
Quer dizer, o ponto I estabelece como regra base a de
que ninguém poderá tirar partido de um prejuízo pelo facto de ter nascido,
acrescentando que caso a pessoa tenha nascido com um defeito devido a um erro
do médico, pode obter a reparação do seu dano, quando aquele provocou
directamente o defeito ou o agravou e/ou não permitiu a tomada de medidas para
a atenuação do problema: passou-se a fazer a distinção entre o chamado dano
pré-natal, o qual merece a tutela jurisdicional, do ressarcimento do dano da
vida indevida, situação esta agora definitivamente afastada em termos legais.
De uma maneira geral a doutrina e jurisprudência
europeia e norte americana admite as acções de wrongful birth, no caso sujeito a que se mostra intentada pela
Autora, mãe do Autor, com vista a ser ressarcida pelos danos decorrentes da
gravidez, bem como aqueles que decorrem das necessidades especiais da criança,
tal como decidido foi pelo segundo grau, vg:
a) acompanhamento clínico permanente de que o J necessita e continuará a
necessitar, tratamento e acompanhamento técnico de que a Autora não tem
conhecimentos para assegurar; b) próteses de que o J necessitar; c) educação e
instrução especial de que o J houver de ter em razão da deficiência, com a
contratação de professores, técnicos, e material de ensino especialmente
direccionados ao seu estado clínico.
Todavia, aquelas mesmas correntes, nos
casos em que a par da wrongful birth
action se cumula uma wrongful
life action, esta é rejeitada in
limine por se considerar inadmissível o ressarcimento do dano pessoal de
se ter nascido (para além igualmente das questões suscitadas a nível da
quantificação do valor da vida – quanto vale a vida? pode uma vida valer mais
do que outra? uma vida com deficiência é menos valiosa que uma vida sem
deficiência? quais os critérios de valoração? etc - caso tal indemnização fosse
possível), sendo que esta questão nos coloca perplexidades várias, passando
pelas filosóficas, morais, religiosas, politicas, para além, obviamente, das
jurídicas, cfr Dias Pereira, O consentimento informado na relação
médico-paciente. Estudo de direito civil, 2004, 378/391, António Pinto
Monteiro, Direito à não existência, direito a não nascer, in Comemorações dos 35 anos do Código
Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, Vol II, A parte geral do código e a
teoria geral do direito civil, 131/138 e o mesmo Autor, em anotação ao Ac STJ
de 19 de Junho de 2001, in RLJ,
ano 134, nº3933, 377/384».
(…) Só que, o
problema com o qual nos deparamos, neste particular é o de saber se a
atribuição de uma indemnização nestas circunstâncias específicas, o nascimento
deficiente do Autor, constitui um dano juridicamente reparável atento o nosso
ordenamento jurídico, o que não nos parece ser enquadrável em termos
normativos, antes se nos afigurando a sua impossibilidade e nos levaria a
questionar outras situações paralelas tais como a eutanásia e o suicídio, as
quais passariam a ter leituras diversas, chegando-se então à conclusão que afinal
poderá existir um “direito à não vida” (embora no que tange ao suicídio
sempre se possa argumentar que o mesmo não é punido, embora este argumento seja
falacioso posto que, sendo o autor do pretenso «facto crime» o «objecto»
do mesmo, como é sabido a morte do arguido é um facto extintivo da
responsabilidade penal, nos termos do artigo 127º, nº1 do CPenal, constituindo
tipos legais de crime, pp por aquele mesmo compêndio normativo, quer o
homicídio a pedido da vitima, quer o incitamento ou a ajuda ao suicido,
respectivamente artigos 134º e 135º), Pinto Monteiro, l.c. 387, Menezes
Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo III, 331, Rabindranath
Capelo de Sousa, O Direito Geral De personalidade, 205/206, João Álvaro Dias,
Dano Corporal, 503/504, Carneiro da Frada, ibidem, Marta de Sousa Nunes
Vicente, Algumas Reflexões sobre as acções de “wrongful life”), in Lex
Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 6, nº11, 2009, 117/141 e
a jurisprudência norte americana, decisão do caso Gleitman v. Cosgrove, em que
o Tribunal declarou «(…) even if [such] damages were cognisable…a claim for
them would be precluded by the countervailing public policy supporting the
preciousness of human life. (…)», in Harvey Teff, The Action for Wrongful Life in
England and the United States, in International and Comparative Law
Quaterly, nº34, Issue 3, Julho 1985, 423/441, cfr também “wrongful Birth»
“wrongful life” y “wrongful pregnancy, Analisis de la jurisprudencia
nortamericana. Reseña de
jurisprudência francesa, por Graciela Medina y Carolina Winograd, disponível na
internet no site biblioteca jurídica virtual.
(…) Por outra
banda, como equaciona Pinto Monteiro na anotação ao Ac STJ de 19 de Junho de
2001, se no caso de se reconhecer à criança o direito a ser indemnizada pelos
médicos que não informaram os pais das deficiências de que ela padecia, «(…) quid
juris se essa informação tiver sido prestada, mas os pais, devidamente
esclarecidos, optarem por não abortar e a criança vier a nascer com graves
malformações? Serão os pais responsáveis perante a criança?! Poderá o filho,
quando maior, pedir essa indemnização aos pais?! Teriam estes, afinal, a
obrigação de interromper a gravidez em tais situações?! (…)».
(…) Só que, o problema com o qual nos deparamos, neste
particular é o de saber se a atribuição de uma indemnização nestas
circunstâncias específicas, o nascimento deficiente do Autor, constitui um dano
juridicamente reparável atento o nosso ordenamento jurídico, o que não nos
parece ser enquadrável em termos normativos, antes se nos afigurando a sua
impossibilidade e nos levaria a questionar outras situações paralelas tais como
a eutanásia e o suicídio, as quais passariam a ter leituras diversas,
chegando-se então à conclusão que afinal poderá existir um “direito à não vida” (embora no que
tange ao suicídio sempre se possa argumentar que o mesmo não é punido, embora
este argumento seja falacioso posto que, sendo o autor do pretenso «facto
crime» o «objecto» do mesmo,
como é sabido a morte do arguido é um facto extintivo da responsabilidade
penal, nos termos do artigo 127º, nº1 do CPenal, constituindo tipos legais de
crime, pp por aquele mesmo compêndio normativo, quer o homicídio a pedido da
vitima, quer o incitamento ou a ajuda ao suicido, respectivamente artigos 134º
e 135º), Pinto Monteiro, l.c. 387, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil
Português, I, Tomo III, 331, Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral De
personalidade, 205/206, João Álvaro Dias, Dano Corporal, 503/504, Carneiro da
Frada, ibidem, Marta de Sousa
Nunes Vicente, Algumas Reflexões sobre as acções de “wrongful life”), in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de
Direito da Saúde, Ano 6, nº11, 2009, 117/141 e a jurisprudência norte
americana, decisão do caso Gleitman v. Cosgrove, em que o Tribunal declarou
«(…) even if [such] damages were cognisable…a claim for them would be
precluded by the countervailing public policy supporting the preciousness of human life. (…)», in Harvey Teff, The
Action for Wrongful Life in England and the United States, in International and Comparative Law
Quaterly, nº34, Issue 3, Julho 1985, 423/441, cfr também “wrongful Birth» “wrongful life” y “wrongful
pregnancy, Analisis de la jurisprudencia nortamericana. Reseña de jurisprudência francesa, por Graciela Medina
y Carolina Winograd, disponível na internet no site biblioteca jurídica
virtual.
Por outra banda, como equaciona Pinto Monteiro na
anotação ao Ac STJ de 19 de Junho de 2001, se no caso de se reconhecer à criança
o direito a ser indemnizada pelos médicos que não informaram os pais das
deficiências de que ela padecia, «(…) quid
juris se essa informação tiver sido prestada, mas os pais, devidamente
esclarecidos, optarem por não abortar e a criança vier a nascer com graves
malformações? Serão os pais responsáveis perante a criança?! Poderá o filho,
quando maior, pedir essa indemnização aos pais?! Teriam estes, afinal, a
obrigação de interromper a gravidez em tais situações?! (…)».
(…) De qualquer forma, sempre acrescentamos «ex abundanti», que a indemnização
atribuída à Autora a título de danos patrimoniais futuros, consistente nas
despesas relativas ao acompanhamento clínico permanente de que o J necessita e
continuará a necessitar, tratamento e acompanhamento técnico de que a Autora
não tem conhecimentos para assegurar; próteses de que o J necessitar; e
educação e instrução especial de que o J houver de ter em razão da deficiência,
com a contratação de professores, técnicos, e material de ensino especialmente
direccionados ao seu estado clínico, que se quantificar em oportuna liquidação,
em boa verdade, corresponde a parte da indemnização atribuída no caso baby Kelly Molinaar, em que os
Autores encontraram arrimo para sustentar a sua pretensão na parte respeitante
ao Autor».
Consultar Ac. do TR Porto de 01/03/2012
Consultar o Ac. STJ de 17/01/2013