domingo, 27 de janeiro de 2013

Direito à não existência - Negligência Médica




O Acórdão de 17/01/2013 do Supremo Tribunal de Justiça veio a decidir sobre recurso da decisão do Tribunal da Relação do Porto, sobre uma questão polemica e difícil de resolução face a complexidade que resulta da situação concreta.
Trata-se de apurar a responsabilidade contratual do médico, no acompanhamento médico de uma gravida.
Uma das questões que aqui se coloca é, se no sistema jurídico português existe – o direito à não existência.
Pelo interesse jurídico que esta matéria suscita deixo a decisão do TR Porto de 01/03/2012 e a do STJ de 17/01/2013 (que é uma novidade na jurisprudência).
Transcrevo, partes da decisão desta última decisão, que entendo de grande relevância. 

«De todo este complexo factual pode-se concluir sem qualquer margem para dúvidas que por parte dos Réus houve uma conduta ilícita e culposa, pois poderiam e deveriam ter agido de outro modo face à constatação inequívoca de malformações do feto, traduzindo-se a violação dever cuidado na preterição da leges artis na matéria de execução do diagnóstico porque este deveria ter conduzido à aferição das aludidas malformações, atentos os meios empregues em termos de equipamento e tendo em atenção a preparação privilegiada do Réu, o médico M, cujos conhecimentos científicos, como demonstrado ficou, estão acima da média, o que nos conduz à sua responsabilização contratual tal como decidido se encontra pelas instâncias, inexistindo qualquer circunstância susceptível de afastar a presunção de culpa que sobre os mesmos impende, de harmonia com o preceituado o no artigo 799º, nº1 do CCivil».
(…)
«A circunstância de a Lei permitir à grávidas a interrupção da gravidez nesta situação, além do mais, não tem de per si a virtualidade de «interromper» o apontado nexo, fazendo antes parte do mesmo, porque sendo aquela solução uma opção das interessadas, desde que devidamente informadas com o rigor que se impõe neste tipo de ocorrências, impenderia sobre os Réus os mais elementares deveres de cuidado no que tange à elaboração do diagnóstico, o que de forma culposa omitiram, impedindo assim a Autora de utilizar o meio legal que lhe era oferecido, atento o tempo de gestação em curso (inferior às vinte quatro semanas), de não levar a termo a sua gravidez caso o entendesse, o que esta teria feito atentas as circunstâncias.
Daqui decorre a consequente responsabilização dos Réus, recaindo sobre os mesmos o dever de indemnizar, estando, assim, as conclusões, neste particular, condenadas ao insucesso.
Aqui chegados, vejamos então em que termos se irá traduzir o dever de ressarcimento dos danos advenientes do comportamento culposo daqueles, o que nos leva à análise do seu pedido recursivo subsidiário»
(…)Esta expressão, «wrongful life», foi utilizada pela primeira vez nos EUA, por um Tribunal do Estado do Illinois, no caso Zepeda versus Zepeda, tendo-se generalizado por contraposição à expressão «wrongful death», enquanto nestas acções o pedido tinha por base a vida que deveria ter continuado e à qual foi posto termo, naqueloutras, o pedido encontra a sua fundamentação numa vida que continua quando deveria ter terminado, ou melhor dizendo que nunca deveria ter tido início, sendo que neste tipo de acções, levadas a cabo pela própria criança, através dos seus representantes legais, invocando como danos os emergentes do seu próprio nascimento, a qual não existiria caso o médico tivesse agido com a diligência que sobre si impendia, cfr Mark Cohen, Park v. Chessin: the continuing judicial development of the theory of «wrongful life», in American Journal of Law & Medicine, 1978, vol 4, nº2, 211/232, Fernando Dias Simões, Vida Indevida, As acções por wrongful life e a dignidade da vida humana, ibidem, 187/203 e Carneiro da Frada, A própria vida como dano? Dimensões civis e constitucionais de uma questão limite, in Revista da Ordem dos Advogados, 2008, I, 215/253.
A grande discussão desta temática surgiu-nos com o famoso arrêt Perruche, da Cour de Cassation francesa de 17 de Novembro de 2000: Nicolas Perruche nasceu a 14 de Janeiro de 1983, o qual vem a apresentar um ano mais tarde malformações do síndrome de Gregg (também conhecido pelo síndrome da rubéola congénita, embriopatia rubeólica e agente etiológico), por força de rubéola contraída por sua mãe durante a gravidez, tendo aquele Tribunal decidido m sessão plenária que a criança tinha direito a uma indemnização porque as faltas cometidas pelo médico e pelo laboratório tinham impedido a possibilidade da mãe interromper a gravidez e assim evitar o seu próprio nascimento, de onde pela primeira vez na história judiciária um Tribunal Superior concedeu uma indemnização a uma criança pelo facto de ela ter nascido e a polémica instalou-se, não só na sociedade francesa, à qual o assunto dizia, na altura, directamente respeito, bem como a nível europeu, tendo o legislador francês vindo a aprovar a Lei 2002-303, de 4 de Março de 2002, sobre os direitos dos doentes e qualidade dos serviços de saúde, se estabelece:
«I. - Nul ne peut se prévaloir d'un préjudice du seul fait de sa naissance. La personne née avec un handicap dû à une faute médicale peut obtenir la réparation de son préjudice lorsque l'acte fautif a provoqué directement le handicap ou l'a aggravé, ou n'a pas permis de prendre les mesures susceptibles de l'atténuer.
Lorsque la responsabilité d'un professionnel ou d'un établissement de santé est engagée vis-à-vis des parents d'un enfant né avec un handicap non décelé pendant la grossesse à la suite d'une faute caractérisée, les parents peuvent demander une indemnité au titre de leur seul préjudice. Ce préjudice ne saurait inclure les charges particulières découlant, tout au long de la vie de l'enfant, de ce handicap. La compensation de ce dernier relève de la solidarité nationale.
Les dispositions du présent I sont applicables aux instances en cours, à l'exception de celles où il a été irrévocablement statué sur le principe de l'indemnisation.
II. - Toute personne handicapée a droit, quelle que soit la cause de sa déficience, à la solidarité de l'ensemble de la collectivité nationale.
III. - Le Conseil national consultatif des personnes handicapées est chargé, dans des conditions fixées par décret, d'évaluer la situation matérielle, financière et morale des personnes handicapées en France et des personnes handicapées de nationalité française établies hors de France prises en charge au titre de la solidarité nationale, et de présenter toutes les propositions jugées nécessaires au Parlement et au Gouvernement, visant à assurer, par une programmation pluriannuelle continue, la prise en charge de ces personnes.», in L'arrêt PERRUCHE et ses suites (naissance d'un enfant handicapé) Rédigé par Me DURRIEU-DIEBOLT, Avocat à la Cour, disponível na internet, cfr ainda www.courdecassation.fr e www.legifrance.gouv.fr.
Quer dizer, o ponto I estabelece como regra base a de que ninguém poderá tirar partido de um prejuízo pelo facto de ter nascido, acrescentando que caso a pessoa tenha nascido com um defeito devido a um erro do médico, pode obter a reparação do seu dano, quando aquele provocou directamente o defeito ou o agravou e/ou não permitiu a tomada de medidas para a atenuação do problema: passou-se a fazer a distinção entre o chamado dano pré-natal, o qual merece a tutela jurisdicional, do ressarcimento do dano da vida indevida, situação esta agora definitivamente afastada em termos legais.
De uma maneira geral a doutrina e jurisprudência europeia e norte americana admite as acções de wrongful birth, no caso sujeito a que se mostra intentada pela Autora, mãe do Autor, com vista a ser ressarcida pelos danos decorrentes da gravidez, bem como aqueles que decorrem das necessidades especiais da criança, tal como decidido foi pelo segundo grau, vg: a) acompanhamento clínico permanente de que o J necessita e continuará a necessitar, tratamento e acompanhamento técnico de que a Autora não tem conhecimentos para assegurar; b) próteses de que o J necessitar; c) educação e instrução especial de que o J houver de ter em razão da deficiência, com a contratação de professores, técnicos, e material de ensino especialmente direccionados ao seu estado clínico.   
   Todavia, aquelas mesmas correntes, nos casos em que a par da wrongful birth action se cumula uma wrongful life action, esta é rejeitada in limine por se considerar inadmissível o ressarcimento do dano pessoal de se ter nascido (para além igualmente das questões suscitadas a nível da quantificação do valor da vida – quanto vale a vida? pode uma vida valer mais do que outra? uma vida com deficiência é menos valiosa que uma vida sem deficiência? quais os critérios de valoração? etc - caso tal indemnização fosse possível), sendo que esta questão nos coloca perplexidades várias, passando pelas filosóficas, morais, religiosas, politicas, para além, obviamente, das jurídicas, cfr Dias Pereira, O consentimento informado na relação médico-paciente. Estudo de direito civil, 2004, 378/391, António Pinto Monteiro, Direito à não existência, direito a não nascer, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, Vol II, A parte geral do código e a teoria geral do direito civil, 131/138 e o mesmo Autor, em anotação ao Ac STJ de 19 de Junho de 2001, in RLJ, ano 134, nº3933, 377/384».
(…) Só que, o problema com o qual nos deparamos, neste particular é o de saber se a atribuição de uma indemnização nestas circunstâncias específicas, o nascimento deficiente do Autor, constitui um dano juridicamente reparável atento o nosso ordenamento jurídico, o que não nos parece ser enquadrável em termos normativos, antes se nos afigurando a sua impossibilidade e nos levaria a questionar outras situações paralelas tais como a eutanásia e o suicídio, as quais passariam a ter leituras diversas, chegando-se então à conclusão que afinal poderá existir um “direito à não vida” (embora no que tange ao suicídio sempre se possa argumentar que o mesmo não é punido, embora este argumento seja falacioso posto que, sendo o autor do pretenso «facto crime» o «objecto» do mesmo, como é sabido a morte do arguido é um facto extintivo da responsabilidade penal, nos termos do artigo 127º, nº1 do CPenal, constituindo tipos legais de crime, pp por aquele mesmo compêndio normativo, quer o homicídio a pedido da vitima, quer o incitamento ou a ajuda ao suicido, respectivamente artigos 134º e 135º), Pinto Monteiro, l.c. 387, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo III, 331, Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral De personalidade, 205/206, João Álvaro Dias, Dano Corporal, 503/504, Carneiro da Frada, ibidem, Marta de Sousa Nunes Vicente, Algumas Reflexões sobre as acções de “wrongful life”), in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 6, nº11, 2009, 117/141 e a jurisprudência norte americana, decisão do caso Gleitman v. Cosgrove, em que o Tribunal declarou «(…)  even if [such] damages were cognisable…a claim for them would be precluded by the countervailing public policy supporting the preciousness of human life. (…)», in Harvey Teff, The Action for Wrongful Life in England and the United States, in International and Comparative Law Quaterly, nº34, Issue 3, Julho 1985, 423/441, cfr também “wrongful Birth» “wrongful life” y “wrongful pregnancy, Analisis de la jurisprudencia nortamericana. Reseña de jurisprudência francesa, por Graciela Medina y Carolina Winograd, disponível na internet no site biblioteca jurídica virtual.
(…) Por outra banda, como equaciona Pinto Monteiro na anotação ao Ac STJ de 19 de Junho de 2001, se no caso de se reconhecer à criança o direito a ser indemnizada pelos médicos que não informaram os pais das deficiências de que ela padecia, «(…) quid juris se essa informação tiver sido prestada, mas os pais, devidamente esclarecidos, optarem por não abortar e a criança vier a nascer com graves malformações? Serão os pais responsáveis perante a criança?! Poderá o filho, quando maior, pedir essa indemnização aos pais?! Teriam estes, afinal, a obrigação de interromper a gravidez em tais situações?! (…)».
(…) Só que, o problema com o qual nos deparamos, neste particular é o de saber se a atribuição de uma indemnização nestas circunstâncias específicas, o nascimento deficiente do Autor, constitui um dano juridicamente reparável atento o nosso ordenamento jurídico, o que não nos parece ser enquadrável em termos normativos, antes se nos afigurando a sua impossibilidade e nos levaria a questionar outras situações paralelas tais como a eutanásia e o suicídio, as quais passariam a ter leituras diversas, chegando-se então à conclusão que afinal poderá existir um “direito à não vida” (embora no que tange ao suicídio sempre se possa argumentar que o mesmo não é punido, embora este argumento seja falacioso posto que, sendo o autor do pretenso «facto crime» o «objecto» do mesmo, como é sabido a morte do arguido é um facto extintivo da responsabilidade penal, nos termos do artigo 127º, nº1 do CPenal, constituindo tipos legais de crime, pp por aquele mesmo compêndio normativo, quer o homicídio a pedido da vitima, quer o incitamento ou a ajuda ao suicido, respectivamente artigos 134º e 135º), Pinto Monteiro, l.c. 387, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo III, 331, Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral De personalidade, 205/206, João Álvaro Dias, Dano Corporal, 503/504, Carneiro da Frada, ibidem, Marta de Sousa Nunes Vicente, Algumas Reflexões sobre as acções de “wrongful life”), in Lex Medicinae, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 6, nº11, 2009, 117/141 e a jurisprudência norte americana, decisão do caso Gleitman v. Cosgrove, em que o Tribunal declarou «(…)  even if [such] damages were cognisable…a claim for them would be precluded by the countervailing public policy supporting the preciousness of human life. (…)», in Harvey Teff, The Action for Wrongful Life in England and the United States, in International and Comparative Law Quaterly, nº34, Issue 3, Julho 1985, 423/441, cfr também “wrongful Birth» “wrongful life” y “wrongful pregnancy, Analisis de la jurisprudencia nortamericana. Reseña de jurisprudência francesa, por Graciela Medina y Carolina Winograd, disponível na internet no site biblioteca jurídica virtual.
Por outra banda, como equaciona Pinto Monteiro na anotação ao Ac STJ de 19 de Junho de 2001, se no caso de se reconhecer à criança o direito a ser indemnizada pelos médicos que não informaram os pais das deficiências de que ela padecia, «(…) quid juris se essa informação tiver sido prestada, mas os pais, devidamente esclarecidos, optarem por não abortar e a criança vier a nascer com graves malformações? Serão os pais responsáveis perante a criança?! Poderá o filho, quando maior, pedir essa indemnização aos pais?! Teriam estes, afinal, a obrigação de interromper a gravidez em tais situações?! (…)».
(…) De qualquer forma, sempre acrescentamos «ex abundanti», que a indemnização atribuída à Autora a título de danos patrimoniais futuros, consistente nas despesas relativas ao acompanhamento clínico permanente de que o J necessita e continuará a necessitar, tratamento e acompanhamento técnico de que a Autora não tem conhecimentos para assegurar; próteses de que o J necessitar; e educação e instrução especial de que o J houver de ter em razão da deficiência, com a contratação de professores, técnicos, e material de ensino especialmente direccionados ao seu estado clínico, que se quantificar em oportuna liquidação, em boa verdade, corresponde a parte da indemnização atribuída no caso baby Kelly Molinaar, em que os Autores encontraram arrimo para sustentar a sua pretensão na parte respeitante ao Autor».